O Grande Dia


Tinha tudo pronto: roupa, vaselina, dorsal, ténis, acessórios... Tinha levado panquecas e manteiga de amendoim para que a comida fosse igual à dos treinos e nada falhar. Estava tudo pronto... mas será que eu estava?
Finalmente comecei a acusar os nervos. Os nervos que todos questionavam e que muitos acharam que estava a esconder. Eles apareceram no momento em que me levantei da cama e pensei que tinha uma maratona para fazer. 
Tomei o pequeno-almoço com o estômago embrulhado. Arranjei-me e saí, comecei a sentir que se calhar não era o dia... como é que já era o dia? Passou depressa... Mentira... foram meses e meses de treino e tudo para provar numas meras horas aleatórias. “Não quero ir!” pensei. Entrei no Uber e disse ao Adelino “ainda bem que escolhi correr no Porto... se isto fosse Lisboa estava em casa, escondida debaixo da cama”. O motorista ainda ofereceu um rebuçado, mas eu recusei. Lembro-me que o João disse logo que eu devia estar mesmo nervosa para recusar comida. E estava. 
Chegados ao Sea Life, ponto de encontro marcado, lá estava a grande família do Correr Lisboa. Tirámos a foto da praxe, beijinhos e abraços e boas vibrações a todos e lá fomos às últimas voltas antes da prova. 

Os estreantes e a parceira Paula

Foto de grupo Correr Lisboa

Tinha de ir à casa de banho! Não havia de parar por não ter ido antes da prova. Há sempre um bocadinho de xixi maroto que não fazemos em casa e que depois vai no nosso pensamento durante as provas. Fui com a Paula e com o João até às casas de banho – eram verdadeiras e das que têm limpeza automática. Perfeito! O único defeito foi o tempo que estivemos à espera...  Passou o amigo Canela, deu-me um beijo e um abraço e pela enésima vez perguntou “e essa cabeça? Como está essa cabeça?”, “bem” respondi. Levei uma barrinha para comer antes da prova, mas nem isso entrou e acabei por dar a um senhor que estava na fila. Ficou a olhar com ar desconfiado, como se pudesse explodir ou estar envenenado, mas aceitou. E eis que começa a primeira aventura. Sai um senhor da casa de banho e, gentilmente, segura a porta para que ela não feche e aqui a pequena entra. Começa o terror! Assim que a porta fecha, estou eu, fechada numa cabine escura e a ouvir barulhos estranhos que vinham das mais diversas direções. Não sabia bem o que estava a acontecer, até que a sanita recolheu e começo a levar com jatos de água: estava a ser desinfectada! “Nãooooo!” Estava presa e não sabia literalmente onde me havia de meter. Fechei os olhos, meti-me no centro da cabine e esperei que a “tempestade” passasse. Sobrevivi! Estive do outro lado, mas sobrevivi para contar a história, apenas com os ténis molhados, que com a chuva que caiu durante a prova, foi apenas um adiantamento. 
Seguimos para a partida. Depois da casa de banho não houve tempo para aquecimento, fomos a correr para os blocos e tivemos de entrar no bloco da corrida de 15 km, bem lá atrás. A experiência diz-me que o facto de partir de trás até pode ser benéfico; ás vezes ajuda a controlar aqueles arranques iniciais que parece que vai tudo aos saldos ou à feira do relógio. Na maratona arranques desse são fatais. (Vejam como fiz uma maratona e já falo como uma verdadeira entendida ahahah)
Estava nervosa, ansiosa, mas tudo era normal. “Quando começar a correr isto passa...”
Passou! Arranquei com a Paula e com o João, para o que seria uma das melhores experiências de toda a minha vida! 



O primeiro km, conforme o que já era esperado, foi o mais lento. O João, cujo objetivo era controlar as duas pequenas máquinas de corrida, dizia para não nos preocuparmos que iríamos recuperar rapidamente o tempo perdido. Sem que nos pudéssemos aperceber e, passando a Avenida da Boavista, as pernas ganharam asas e parecia que todo o cansaço se tinha transformado em energia. Íamos soltas, leves, frescas e fofas, como um pãozinho (ahahah). Reparem agora no que vou dizer: tivemos de travar!! Malta, eu tive de travar para ir mais devagar (ahahah). A miúda ia louca (as miúdas, que a outra também não é grande peça)! 
Estava frio, algum vento e a chuva ia fazendo as suas aparições, sendo que quando aparecia, aparecia com toda a sua graça e glória. Mesmo em condições adversas, a malta do Porto é fantástica e lá estavam eles a gritar e a aplaudir, basicamente a dar uma lição de como ser público de uma maratona (ou de qualquer outro desporto diga-se). 
Eu, pessoalmente, gosto muito que a maratona do Porto arranque e partilhe o percurso inicial dos 15 km. Vamos todos juntos e vamos a felicitar-nos uns aos outros e, como tem retornos, acabamos por nos distrair na parte menos interessante da prova. 



Chegados à rotunda da anémona, momento para tirar a foto clássica e sentir aquele boost de energia que aquela imensidão de gente nos dá. O coração saltita um pouco mas há-que manter o ritmo. Mas não... o coração não chegou a ir ao sítio porque pouco tempo depois lá estavam eles, a Sarinha e o David! Fiquei tão feliz de os ver! E eles a mim! Acho que até hoje estão espantados com a miúda que lhes apareceu à frente, cheia de energia e sobretudo sem o queixume (e respiração de moribundo em véspera do 1 de Novembro). Logo a seguir mais uma surpresa: a Paula Capela e a Mariana! Lá estavam as desgraçadas à minha espera, ao frio e à chuva. Foi tão bom vê-las! 



Agora perguntam vocês, em que km foi isso Susana? Deve ter sido por volta dos 15/16. Eu fui a curtir a prova e, por isso, os meus pontos de referência são as “aparições”, as paisagens e as peripécias.
Por volta dessa altura, também tive uma ameaça de cólica... Clássico de runner, quase cliché. Como não gosto de clichés e também não aprecio WC portáteis, pensei em coisas felizes e a cólica passou. 
Ia a falar com alguma descontração, mas o David ia-me mandando calar, para que poupasse energia. Segui todos os conselhos: bebi água e todos os abastecimentos, mesmo não tendo sede e cumpri ao máximo o ritmo estipulado. 
Um pouco antes de chegar à Ribeira, o vento estava forte e tentei proteger-me atrás de um grupo de espanhóis discretamente, mas a Paula insistia em ultrapassa-los. Claro que tive de ser um pouco menos subtil e acabei por ser descoberta. Não percebi porque é que eles se ofereceram para nos continuar a tapar o vento, visto que somos duas criaturas pequenas e adoráveis. Mas pronto, eles também estavam a atrasar-nos e enfrentámos o vento destemidas! Algures neste percurso estava uma banda a tocar “você partiu meu coração” e ainda deu para cantar um bocadinho. 
O abastecimento da Ribeira foi o mais confuso e foi esse o nosso km mais lento. Quem acompanhou a prova pela App, acho que pensou que estaria lá uma parede para escalar porque foi o ponto de quebra de toda a gente. 
Ponte D. Luís – só a tinha passado a correr no dia da Wings for life (que foi uma das melhores corridas da minha vida) e por isso as memórias eram as melhores. O apoio continuava espetacular! Mas havia qualquer coisa que não estava bem... Sentia qualquer coisa no pé, uma sensação de pressão. Não conseguia perceber o que era. Decidi desabafar com a Sarinha que ia ao meu lado: “Tenho qualquer coisa no pé... não sei o que faça”. Ao que ela responde prontamente “Corre que isso passa” (as palavras foram um pouco mais assertivas que isto, até porque ela é uma mulher do norte). Pensei que ela tinha razão. Eu achava que era uma bolha. Se parasse ia ver o estado do pé e seria obrigada a desistir (porque quando sentimos as bolhas elas já são gigantes). Se não parasse podia não ser nada ou ter de desistir quando ficasse incapaz de correr. Continuei e pedi com força que aquilo passasse e que eu não tivesse de desistir. 
Um pouco mais à frente, a Sarinha, que também diz coisas agradáveis, disse “ali no pórtico sorriam e deem as mãos! Dá uma foto muito bonita”. Neste momento ela e o David fizeram uma pequena pausa (afinal não tinham feito mal nenhum, nem nenhuma promessa). Meia maratona feita e dentro do ritmo que o mister Armando tinha pedido. 
As más línguas sempre focaram que a pior parte da prova era do lado de Gaia, porque tinha calçada, sobe e desce, pouco apoio, pouco sol. Olhem, eu gostei! Vais e voltas e vês os companheiros a passar e a calçada nem estava nada de especial. Foi nesse momento também que passou alguém e disse “vai Unicórnio!”. Opa, fiquei radiante! A pequena Paula disse logo “és uma verdadeira influencer” e de facto senti-me a última bolacha do pacote. 
Seguimos juntos e voltámos a passar a ponte e juntou-se a nós a minha querida Catarina. Fez questão de correr connosco e que bem que soube. Ela estava com um ar tão orgulhoso e radiante que deu mais um ânimo extra. Nesta fase confesso que já tinha entrado em modo de poupança de energia e, por isso, não estava a falar muito. 
30 km! E agora? Agora é todo um mundo novo! “Como estás?” Perguntou o João. Estou bem acho... Tinha as pernas cansadas, mas já tinha estado mais cansada em treinos. Perito em matemática da corrida, o João informou que se dali para a frente corrêssemos a 5’30, o objetivo estava feito (3h52). Mas nós íamos mais rápido! Fiquei mais tranquila e nesse momento acreditei que ia chegar bem ao fim, só precisava de manter a cabeça no sítio. 
Algures por esta altura, vi os meus companheiros de treino fortíssimos a passar. E este foi o único momento de tristeza em toda a prova. O meu Caramba passou e fez um sinal de que não estava bem. Só não acontece a quem não almeja algo desafiante, mas custa sempre. Queremos sempre que as coisas corram bem, especialmente aos nossos. Caramba, não foi o teu dia, mas está para breve! 
Nesta fase, a Paula arrancou e seguiu um pouco mais à minha frente com o Frederico. Entretanto a Catarina termina a sua missão e passa o testemunho novamente ao David e à Sarinha. Vi que o João estava a atingir o seu limite e que estava a passar a estratégia ao David. E enquanto estava a tentar perceber o que eles falavam (fico um bocado surda quando corro), apercebi-me que estava no “Túnel”. Já tinha ouvido falar que se passava por um túnel e que a música era incrível e que arrepiava... meh.... Estavam a passar imagens de Berlim e do Kipchoge e estavam lá pessoas com marretas alusivas ao malfadado “muro”.  Fraquinho, fraquinho... Da próxima vez que passar por lá quero mais entusiasmo e alegria! Quero ouvir essas palmas!!! 



Eu divido os percursos em ida e vinda. A vinda é sempre aquela contagem decrescente que motiva e, nesta fase, já estávamos na vinda. O mister parece que é bruxo e adivinhou que a partir dos 30 km íamos começar a passar gente e que isso nos ia motivar. E motiva! Não pela desgraça dos outros, mas por nos fazer sentir que a prova está a ser bem gerida. 
Passámos por um grupo de vicentes e há sempre aquela troca de palavras carinhosas! Mais um balão de oxigénio e siga em frente. Tinha as pernas a ficar tensas, mas é normal... Decidi tomar o meu magnésio de absorção rápida, porque eu e as cãibras temos uma relação difícil. Disse “acho que vou ter uma cãibra” e o João que entretanto tinha ficado para trás, acelerou só para dizer para eu correr e me deixar de tretas. 
E, não há coincidências, mas conforme também o Canela tinha previsto (dei-me conta agora que conheço muitos bruxos), acabei por o ultrapassar. Não é que tenha estaleca para o ultrapassar, mas ele ia a rebocar uma amiga. Lembrei-me de ele me ter dito que eu só precisava de sofrer 7 km... E quando passei por ele acho que faltavam sensivelmente esses 7 km. Disse-lhe que estava pronta para então começar a sofrer. Vocês não imaginam a cara dele. Abriu aquele sorriso que tanto o caracteriza e disse: “qual sofrer miúda?! Tu estás fresca... parece que estás nas compras. Sai mas é daqui”. E lá fui eu! 
Aos 38 km, a Sarinha vai até à placa e diz: “Sabes o que é isto?!? Sabes?! É o fim oficial do muro! Está feita!” E lá está, eu não conheci o muro! E nem quero vir a conhecer! Pensei: só mais um esforço que agora é a parte do coração. Vinha incrédula com o facto de estar a conseguir manter um ritmo acelerado. E eis que surgem mais duas personagens neste meu conto: a Luísa e o Cordeiro. Saídos debaixo da varanda de um prédio, lá estavam eles prontos a fazer os últimos kms comigo. Também nessa zona estava o Tiago e apesar de não ter arrancado comigo (tinha outra missão), vi nos olhos dele o tremendo orgulho que ele estava a sentir. Sou uma tipa de sorte! 
Estavam cheios de energia, sobretudo o Cordeiro e o David que continuavam a acelerar como se eu estivesse a fazer uma prova de 10 km... As únicas palavras que eu dizia nessa altura eram: “não estiquem mais sff”. 
Nessa altura o vento estava fortíssimo e a chuva também não estava agradável. Contudo, não me posso queixar porque o vento estava a meu favor. Passei a rotunda do Sea Life e faltava tão pouco que quase podia cheirar! Acelera, acelera! Faltava aquela subidinha final e o David estende a mão em direção ás minhas costas e pergunta “posso?” e eu anui. Empurrou-me rampa acima (espero não ser desclassificada) e depois disse acelera que está quase, dá tudo agora. E eu dei! Tempo final: 3h50’11’’
Malta... foi simplesmente incrível!



*Bohemian Rhapsody - Queen*

P.S. Eu sei que já coloquei Queen... Mas haverá melhor música para descrever o mix de emoções de uma prova tão longa e tão mágica? Por isso guardem as pedras novamente sff. A gerência agradece. 

Comentários

  1. Aleluia, finalmente o relato da tua Maratona! Uma pessoa até já se tinha esquecido, mas assim dá para recordar aquele belo dia de chuvinha. Nota-se a tua alegria nas fotos e isso é fundamental para que tenhas tido "uma das melhores experiências" de toda a tua vida. :)
    Parabéns pelo teu resultado - e que excelente resultado numa estreia! A pergunta que se impõe é: já escolheste onde vais fazer a segunda?

    Caríssima "influencer", culpado me confesso e fico feliz por teres ficado radiante. Era essa a ideia:

    https://objectivo42km.blogspot.com/2018/11/maratona-do-porto-2018.html
    "Decidi também dar uma de apoiante anónimo e quando vi a Susana passar gritei-lhe um "Força Unicórnio!" Apoio nunca é demais, pois não?"


    Já agora, também gritei um "Força Susana" no retorno a seguir aos 30km. :)
    Beijinhos!

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